segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Um belo texto de Talita Alcalá Vinagre

Apresentação Seminário “Cinema e a experiência do Conhecimento” NEAMP/PUCSP realizado na APROPUC/PUCSP dias 30/nov, 1 e 2/dez de 2009.

A potência política da videoarte na “Poética de Um Andarilho”:
Talita Alcalá Vinagre*

A proposta da presente exposição surgiu no decorrer da minha pesquisa para o Trabalho de Conclusão de Curso em Ciências Sociais, no qual propus percorrer a relação entre arte e política tomando como orientação teórica as ferramentas de filosofia nietzschiana e tendo como ressonância o experimento artístico a “Poética de Um Andarilho”.
Para acessar um pouco do que foi tal experimento de dança, realizado por Dudude Herrmann em duas praças da cidade de Belo Horizonte nos anos de 2002/2003, recorri à própria artista, que então me cedeu dois vídeos realizados que referenciam a sua dança.
Dentre os vídeos, um particularmente me instigou bastante por ser uma obra potente, pois supera uma intenção de registro da “Poética de Um Andarilho”. Constitui-se como outro acontecimento, com autonomia e uma força própria: o vídeo do artista plástico, poeta, ilustrador, videomaker, compositor de ruídos, aeromodelista e professor da Escola de Belas Artes da UFMG, Marcelo Kraiser.
Quais são os efeitos produzidos por uma obra de arte, o que ela estimula e o que enfraquece em relação aos valores. Éticaoptica. Não somente o vídeo de Kraiser, mas nenhuma obra de arte é desprovida de sentido. Kraiser evidencia em sua obra a invenção de valores próprios, que, tomados sob o perspectivismo nietzschiano, são valores que afirmam a vida no que esta tem de mais potente: a arte como estimulante.

Ao inserir textos, ruídos, música, filtros coloridos, o vídeo de Kraiser ganha o caráter de uma “escritura” e sobrepõe-se à sua função mais elementar de registro. Além disso, pode-se perceber que é um trabalho que não se pretende narrativo, pois não intenta amarrar uma história do que foi a “Poética de Um Andarilho”. Há ali uma desintegração de toda e qualquer unidade e homogeneidade discursiva. Uma técnica de escritura múltipla em texto, vozes, ruídos e imagens simultâneas que se combinam e se entrechocam.
O vídeo de Kraiser marca também sua diferença na relação com a temporalidade, pois se desprende de uma seqüência linear, presente, passado e futuro e mergulha na descontinuidade do tempo do acontecimento.
Imagens fluidas, ruidosas e marcadamente manipuladas, o vídeo de Kraiser já não autoriza um tratamento no plano da mera referencialidade, no plano do registro documental puro e simples. Manifesta-se como intervenção gráfica, o que pressupõe uma arte de relação, arte do sentido e não simplesmente do olhar.
Isso se relaciona com aquilo que Arlindo Machado aponta ao colocar que essa relação de sentido provocada pela vídeo-arte implica na possibilidade de uma leitura autônoma, criativa e não prevista do público. E, nesse sentido, os atos de leitura e recepção, pelo fato de pressuporem interpretações diferenciadas, sempre foram também atos de criação e expressões de liberdade. A partir dos anos 60, particularmente tais atos ganharam autonomia suficiente a ponto de transformarem, muitas vezes o receptor em co-criador da obra. Os móbiles de Calder, os happenings do grupo Fluxus, os bichos de Lígia Clark, os parangolés de Hélio Oiticica são apenas alguns exemplos, dentre milhares de outros, de obras que pressupõem a intervenção ativa do leitor/espectador, solicitando da audiência uma resposta autônoma e não prevista.
Assim, a disponibilidade instantânea de todas as possibilidades articulatórias da vídeoarte permite conceber obras não necessariamente “acabadas”, obras que existem em estado potencial. E, a vídeo-arte foi pioneira em denunciar e negar a tendência passiva do vídeo ao mesmo tempo que logrou definir para si estratégias e perspectivas próprias.
Nesse sentido de não ser uma obra “acabada” em si - e daí a sua potência - insere-se o vídeo de Kraiser. Seu vídeo é uma linguagem artística que age diretamente no corpo, produzindo uma excitação nervosa, que se distancia do plano da consciência, do inteligível.
Segundo Nietzsche, essa excitação nervosa provocada pelo estado estético implica num aumento de intensidade; um incremento de força. Assim, o vídeo de Kraiser age sobre o corpo e essa ação é acompanhada de um acréscimo de potência, o que se relaciona com aquilo que o artista plástico norte-americano Bill Viola aponta ao dizer que “O vídeo é uma experiência física, mais até do que o cinema. A experiência de assistir é uma experiência que tem um efeito direto nos corpos das pessoas. (...) O vídeo pode ser um instrumento poderoso para tocar as pessoas diretamente (...) Desde a Idade Média, esse caminho na cultura ocidental é feito através do intelecto e não do corpo. O corpo foi negligenciado” .
Outra questão que se colocou para evidenciar a potência política do vídeo de Kraiser diz respeito àquilo que o filósofo David Lapoujade , apontou como motivo pelo qual a arte é tão interessante à vida. Não é porque a arte está diretamente relacionada com as questões humanas, voltada para um aprimoramento do sujeito, ou do humano. Mas, porque a potência da arte está em sua capacidade de inventar o real, produzir realidade(s). Uma arte potente torna real algo que ainda não pode ser concebido como real. E nesse sentido, é uma arte que se diferencia dos outros tipos de arte, pelo fato de ser a arte do porvir.
E, por isso não é toda a arte que engendra uma relação de forças móveis. Pois, há muita arte que se encerra em si mesma que está pronta e que, embora nos reconheçamos nela: “Ah, isso eu sei o que é”; “É como eu, como a minha vida”; é um tipo de arte que não revela nada além do instituído; daquilo que já é conhecido; um tipo de arte que se prende na fixidez da relação sujeito – objeto, da representação do mundo em códigos fixos e facilmente comunicáveis, reconhecíveis. Que faz com que se permaneça prisioneiro do já dito, do já visto e sentido, aos caminhos já dados pelas leis que não cessam de serem criadas, pela razão necessária de se induzir e determinar pontos de chegada e de partida, por meio dos quais se impõe os guias impelindo a todos à retidão moral e a dos sentidos.
A potência da arte não se reduz à reprodução ou invenção de formas, mas, em sua capacidade de captar forças. Deleuze, atenta para essa potência quando traz à tona a complexa discussão acerca da tarefa da arte que engendra a frase do artista plástico suíço Paul Klee: “não apresentar o visível, mas tornar visível” . A potência da arte se define, portanto, pela ação do artista de tornar visíveis por meio de sua obra forças que não são visíveis.
E, para que a arte torne-se capaz de captar tais forças antes invisíveis é imprescindível que esta não se submeta à representação. Assim como a não submissão às codificações de corpo também se faz necessário, pois estas fixam o corpo ao sistema corpóreo, organizado, o que diminui a potência de vida; de trasbordamento do corpo; do corpo como superfície em expansão; que rompe com as fronteiras dos órgãos. O corpo que Deleuze aponta, quando cita Antonin Artaud: “O corpo é o corpo. Ele está sozinho. E não precisa de órgãos O corpo nunca é organismo. Os organismos são inimigos do corpo” . O corpo sem órgãos se opõe ao enquadramento do corpo a um sistema corpóreo, à organização dos órgãos que se chama organismo. Para então, irromper como corpo intenso, de intensidades. “Ele é percorrido por uma onda que traça no corpo níveis ou limiares segundo as variações de sua amplitude. O corpo, portanto, não tem órgãos, mas limiares ou níveis. De modo que a sensação não é qualitativa nem qualificada: ela possui apenas uma realidade intensiva que nela não determina mais dados representativos, mas variações alotrópicas. A sensação é vibração ”.
Assim, o vídeo de Kraiser retoma o sentido nietzschiano da arte como produção de uma excitação nervosa, que delineia ondas, percorrendo níveis, opera no mundo das sensações e não da representação. Pois a arte age, produzindo sensações “(...) que é o encontro da onda com Forças que agem sobre o corpo” .
É a vida que escapa a um sistema de codificações – que se impõe com a premissa de torná-la cognoscível e comunicável universalmente -. Assim, a potência do vídeo de Kraiser está em sua capacidade de escapar às idealizações da vida e de se ancorar nos limites fixados pelo conhecimento. Afirma com isso a potência de uma vida inventiva, tornando possível deslocar os limites sobre a vida e fazendo também do pensamento algo insubmisso.














*Graduada em Ciências Sociais pela PUC-SP e pesquisadora integrante do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política (NEAMP-PUCSP).